Álvaro de Campos
324 posts
O Poeta Álvaro de...

Mil-Frases

há 1 ano

Quando nos iremos, ah quando iremos de aqui? Quando, do meio destes amigos que não conheço, Do meio destas maneiras de compreender que não compreendo, Do meio destas vontades involuntariamente Tão contrárias à minha, tão contrárias a mim?! Ah, navio que partes, que tens por fim partir, Navio com velas, navio com máquina, navio com remos, Navio com qualquer coisa com que nos afastemos, Navio de qualquer modo deixando atrás esta costa, Esta, a sempre esta costa, esta sempre esta gente, Só válida à emoção através da saudade futura, Da saudade, esquecimento que se lembra, Da saudade, engano que se deslembra da realidade, Da saudade, remota sensação do incerto Vago misterioso antepassado que fomos, Renovação da vida antenatal, [...] Absurdamente surgindo, estática e constelada Do vácuo dinâmico do mundo. Que eu sou daqueles que sofrem sem sofrimento, Que têm realidade na alma, Que não são mitos, são a realidade Que não têm alegria do corpo ou da alma, daqueles Que vivem pedindo esmola com a vontade de perdê-la... Eu quero partir, como quem exemplarmente parte. Para que hei-de estar onde estou se é só onde estou? Para que hei-de ser sempre eu se eu não posso ser quem sou, Mas isto tudo é como uma realidade longínqua Daqueles que não partiram ou daqueles Cujo lar é nenhum e de memória Quando, navio [...], deixaremos o lar que não temos? Navio, navio, vem! Ó lugre, corveta, barca, vapor de carga, paquete, Navio carvoeiro, veleiro de mastro, carregado de madeira, Navio de passageiros de todas as nações diversas, Navio todos os navios, Navio possibilidade de ir em todos navios Indefinidamente, incoerentemente, À busca de nada, À busca de não buscar, À busca só de partir. À busca só de não ser À primeira morte possível ainda em vida — O afastamento, a distância, a separar-nos de nós. Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém, É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa, A casa, o campo, a margem, a gare, ou o cais. Tudo que vimos é nós, vivemos só nós o mundo. Não temos senão nós dentro e fora de nós, Não temos nada, não temos nada, não temos nada... Só a sombra fugaz no chão da caverna no depósito de almas, Só a brisa breve feita pela passagem da consciência, Só a gota de água na folha seca, inútil orvalho, Só a roda multicolor girando branca aos olhos Do fantasma inteiro que somos, Lágrima das pálpebras descidas Do olhar velado divino. Navio quem quer que seja, não quero ser eu! Afasta-me A remo ou vela ou máquina, afasta-me de mim! Vá. Veja eu o abismo abrir-se entre mim e a costa, O rio entre mim e a margem. O mar entre mim e o cais, A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida!

0
Álvaro de Campos
324 posts
O Poeta Álvaro de...

Categorias

Poemas

Ver mais

É boa! Se fossem malmequeres!

há 1 ano
É boa! Se fossem malmequeres! E é uma papoula Sozinha, com esse ar de «queres?» Veludo da natureza tola. Coitada! Por ela Saí da marcha pela estra...

Em vão procuro o bem que me negaram.

há 1 ano
Em vão procuro o bem que me negaram. As flores dos jardins herdadas de outros Como hão-de mais que perfumar de longe Meu desejo de tê-las?

Entremos na morte com alegria! Caramba

há 1 ano
Entremos na morte com alegria! Caramba O ter que vestir fato, o ter que lavar o corpo, O ter que ter razão, semelhanças, maneiras e modos; O ter ri...

Grinalda ou coroa

há 1 ano
Grinalda ou coroa É só peso posto Na fronte antes limpa. Grinalda de rosas, Coroa de louros, A fronte transtornam. Que o vento nos possa Mexer no...

Andorinha

há 8 meses
Andorinha lá fora está dizendo: — "Passei o dia à toa, à toa!" Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! Passei a vida à toa, à toa...

John Talbot

há 8 meses
John Talbot, John Talbot, He's not very tall, but He's a baby so sweet, so nice. He looks like-a bird And I never have heard Of such kind, suc...

Enfia, a agulha,

há 1 ano
Enfia, a agulha, E ergue do colo A costura enrugada. Escuta: (volto a folha Com desconsolo). Não ouviste nada. Os meus poemas, este E os outros qu...

VI - O ritmo antigo que há em pés descalços, [1]

há 1 ano
O ritmo antigo que há em pés descalços, Esse ritmo das ninfas repetido, Quando sob o arvoredo Batem o som da dança, Vós na alva praia relembrai...

SAUDAÇÃO A W. WHITMAN [c]

há 1 ano
SAUDAÇÂO A W. WHITMAN Para cantar-te, Para cantar-te como tu quererias que te cantassem, Melhor é cantar a terra, o mar, as cidades e os campos — ...

Concentra-te, e serás sereno e forte;

há 1 ano
Concentra-te, e serás sereno e forte; Mas concentra-te fora de ti mesmo. Não sê mais para ti que o pedestal No qual ergas a estátua do teu ser. Tud...