ODE "A PARTIDA" (excertos) Grande libertador, Que quebraste as algemas de todas as mortes – as do corpo e as da alma A morte, a doença, a tristeza A arte, e a ciência, e a filosofia... Grande libertador Que arrasaste os muros da cadeia velha E fizeste ruir os andaimes da cadeia nova, Que abriste de par em par as janelas todas Nas salas todas de todas as casas, E o vento real limpou do fumo e do sono As salas dadas aos prazeres dos sonhos, ...................................................... Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro, Grande Libertador, volto submisso a ti. Sem dúvida teve um fim a minha personalidade. Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa. Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica – Não ter tido a tua calma superior a ti próprio, A tua libertação constelada de Noite Infinita. Não tive talvez missão alguma na terra, ........................................................... Ah, se todo este mundo claro, e estas flores e luz, Se todo este mundo com terra e mar e casas e gente, Se todo este mundo natural, social, intelectual, Estes corpos nus por baixo das vestes naturais, Se isto é ilusão, por que é que isto está aqui? Ó mestre Caeiro, só tu é que tinhas razão! Se isto não é, por que é que é? Se isto não pode ser, então porque pôde ser? Acolhei-a, ao chegar, A ela, à Morte, a esse erro da vista, Com os cheiros dos campos, e as flores cortadas trazidas ao colo, Com as romarias e as tardes pelas estradas, Com os ranchos festivos, e os lares contentes, Com a alegria e a dor, com o prazer e a mágoa, Com todo o vasto mar movimentado da vida. Acolhei-a sem medo, Como quem na estação de província, no apeadeiro campestre, Acolhe o viajante que há-de chegar no comboio do Além. Acolhei-a contentes, Crianças cantando de riso, corpos de jovens nos jogos, Alegria rude e natural das tabernas. E os braços e os beijos e os seios das raparigas. .................................................... Da casa do monte, símbolo eterno e perfeito, Vejo os campos, os campos todos, E eu os saúdo por fim com a voz verdadeira, Eu lhes dou vivas, chorando, com as lágrimas certas e os vivas exactos Eu os aperto a meu peito, como filho que encontrasse o pai perdido. Vivam, vivam, vivam Os montes, e a planície, e as ervas! Vivam os rios, vivam as fontes! Vivam as flores, e as árvores, e as pedras! Vivam os entes vivos – os bichos pequenos, Os bichos que correm, insectos e aves, Os animais todos, tão reais sem mim, Os homens, as mulheres, as crianças, As Famílias, e as não-famílias, igualmente! Tudo quanto sente sem saber porquê! Tudo quanto vive sem pensar que vive! Tudo que acaba e cessa sem angústia nem nada, Sabendo, melhor que eu, que nada há que temer, Que nada é fim, que nada é abismo, que nada é mistério, E que tudo é Deus, e que tudo é Ser, e que tudo é Vida. Ah, estou liberto! Ah, quebrei todas As algemas do pensamento. Eu, o claustro e a cave voluntários de mim mesmo, Eu o próprio abismo que sonhei, Eu, que vi em tudo caminhos e atalhos de sombra E a sombra e os caminhos e os atalhos estavam em mim! Ah, estou liberto... Mestre Caeiro, voltei à tua casa do monte E vi a verdade que vias, mas com meus olhos, Verdadeiramente com meus olhos, Verdadeiramente verdade. Ah, vi que não há morte alguma! Vi que Não há abismos! Nada é sinistro! Não há mistério ou verdade! Não há Deus, nem vida, nem alma distinta da vida! Tu, tu Mestre Caeiro, tu é que tinhas razão! Mas ainda não viste tudo, tudo é mais ainda! Alegre cantaste a alegria de tudo, Mas sem pensá-lo tu sentias Que é porque a alegria de tudo é essencialmente imortal. Como cantaras alegre a morte futura Se a puderas pensar como morte, Se deveras sentiras a noite e o acabamento? Não, não: tu sabias Não com teu pensamento, mas com teu corpo inteiro, Com todos os teus sentidos tão acordados ao mundo Que não há nada que morra, que não há coisa que cesse, Que cada momento não passa nunca, Que a flor colhida fica sempre na haste, Que o beijo dado é eterno, Que na essência e universo das coisas, Tudo é alegria e sol E só no erro e no olhar há dor e dúvida e sombra. Embandeira a canto e rosas! E da estação de província, do apeadeiro campestre Lá vem o comboio! Com lenços agitados, com olhos que brilham eternos Saudemos em ouro e flores a morte que chega! ................................