Manuel Bandeira
No mil frases.com, você terá a oportunidade de explorar uma seleção cuidadosamente curada dos poemas de Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, permitindo que sua mente se perca nas sutilezas das palavras e suas interpretações cativantes. Sinta-se convidado a descobrir a profundidade de sua poesia e a riqueza de suas contribuições para a cultura literária brasileira.
Manuel Bandeira
Provinciano que nunca soube Escolher bem uma gravata; Pernambucano a quem repugna A faca do pernambucano; Poeta ruim que na arte da prosa Envelheceu na infância da arte, E até mesmo escrevendo crônicas Ficou cronista de província; Arquiteto falhado, músico Falhado (engoliu um dia Um piano, mas o teclado Ficou de fora); sem família, Religião ou filosofia; Mal tendo a inquietação de espírito Que vem do sobrenatural, E em matéria de profissão Um tísico profissional.
Manuel Bandeira
Duas Marias: Cristina E sua gêmea Isabel. A ambas saúda e se assina Servo e admirador Manuel. Pincel que pintar Cristina Tem que pintar Isabel. Se o pintor for o Candinho, Então é a sopa no mel. Dorme sem susto, Cristina, Dorme sem medo, Isabel: Nossa Senhora vos nina, Ao pé está o Anjo Gabriel.
Manuel Bandeira
Na feira livre do arrebaldezinho Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor: — "O melhor divertimento para as crianças!" Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres, Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos. No entanto a feira burburinha. Vão chegando as burguesinhas pobres, E as criadas das burguesinhas ricas, E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza. Nas bancas de peixe, Nas barraquinhas de cereais, Junto às cestas de hortaliças O tostão é regateado com acrimônia. Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras, Os tomatinhos vermelhos, Nem as frutas, Nem nada. Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável. O vendedor infatigável apregoa: — "O melhor divertimento para as crianças!" E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um círculo inamovível de desejo e espanto.
Manuel Bandeira
Alô cotovia! Aonde voaste, Por onde andaste, Que tantas saudades me deixaste? — Andei onde deu o vento. Onde foi meu pensamento. Em sítios, que nunca viste, De um país que não existe... Voltei, te trouxe a alegria. — Muito contas, cotovia! E que outras terras distantes Visitaste? Dize ao triste. — Líbia ardente, Cítia fria, Europa, França, Bahia... — E esqueceste Pernambuco, Distraída? — Voei ao Recife, no Cais Pousei da Rua da Aurora. — Aurora da minha vida, — Que os anos não trazem mais! — Os anos não, nem os dias, Que isso cabe às cotovias. Meu bico é bem pequenino Para o bem que é deste mundo: Se enche com uma gota de água. Mas sei torcer o destino, Sei no espaço de um segundo Limpar o pesar mais fundo. Voei ao Recife, e dos longes Das distâncias, aonde alcança Só a asa da cotovia, — Do mais remoto e perempto Dos teus dias de criança Te trouxe a extinta esperança, Trouxe a perdida alegria.
Manuel Bandeira
Minha grande ternura Pelos passarinhos mortos, Pelas pequeninas aranhas. Minha grande ternura Pelas mulheres que foram meninas bonitas E ficaram mulheres feias; Pelas mulheres que foram desejáveis E deixaram de o ser; Pelas mulheres que me amaram E que eu não pude amar. Minha grande ternura Pelos poemas que Não consegui realizar. Minha grande ternura Pelas amadas que Envelheceram sem maldade. Minha grande ternura Pelas gotas de orvalho que São o único enfeite De um túmulo.
Manuel Bandeira
Quero beber! cantar asneiras No esto brutal das bebedeiras Que tudo emborca e faz em caco... Evoé Baco! Lá se me parte a alma levada No torvelim da mascarada, A gargalhar em doudo assomo... Evoé Momo! Lacem-na toda, multicores, As serpentinas dos amores, Cobras de lívidos venenos... Evoé Vênus! Se perguntarem: Que mais queres, Além de versos e mulheres?... — Vinhos... o vinho que é o meu fraco!... Evoé Baco! O alfanje rútilo da lua, Por degolar a nuca nua Que me alucina e que eu não domo!... Evoé Momo! A Lira etérea, a grande Lira!... Por que eu extático desfira Em seu louvor versos obscenos, Evoé Vênus! 1918
Manuel Bandeira
Teu corpo dúbio, irresoluto De intersexual disputadíssima, Teu corpo, magro não, enxuto, Lavado, esfregado, batido, Destilado, asséptico, insípido E perfeitamente inodoro É o flagelo de minha vida, Ó esquizóide! ó leptossômica! Por ele sofro há bem dez anos (Anos que mais parecem séculos) Tamanhas atribulações, Que às vezes viro lobisomem. E estraçalhado de desejos Divago como os cães danados A horas mortas, por becos sórdidos! Põe paradeiro a este tormento! Liberta-me do atroz recalque! Vem ao meu quarto desolado Por estas sombras de convento, E propicia aos meus sentidos Atônitos, horrorizados A folha-morta, o parafuso. O trauma, o estupor, o decúbito!
Manuel Bandeira
A sombra imensa, a noite infinita enche o vale... E lá no fundo vem a voz Humilde e lamentosa Dos pássaros da treva. Em nós, — Em noss'alma criminosa, O pavor se insinua... Um carneiro bale. Ouvem-se pios funerais. Um como grande e doloroso arquejo Corta a amplidão que a amplidão continua... E cadentes, metálicos, pontuais, Os tanoeiros do brejo, — Os vigias da noite silenciosa, Malham nos aguaçais. Pouco a pouco, porém, a muralha de treva Vai perdendo a espessura, e em breve se adelgaça Como um diáfano crepe, atrás do qual se eleva A sombria massa Das serranias. O plenilúnio vai romper... Já da penumbra Lentamente reslumbra A paisagem de grandes árvores dormentes. E cambiantes sutis, tonalidades fugidias, Tintas deliquescentes Mancham para o levante as nuvens langorosas. Enfim, cheia, serena, pura, Como uma hóstia de luz erguida no horizonte, Fazendo levantar a fronte Dos poetas e das almas amorosas, Dissipando o temor nas consciências medrosas E frustrando a emboscada a espiar na noite escura, — À Lua Assoma à crista da montanha. Em sua luz se banha A solidão cheia de vozes que segredam... Em voluptuoso espreguiçar de forma nua As névoas enveredam No vale. São como alvas, longas charpas Suspensas no ar ao longo das escarpas. Lembram os rebanhos de carneiros Quando, Fugindo ao sola pino, Buscam oitões, adros hospitaleiros E lá quedam tranquúilos ruminando... Assim a névoa azul paira sonhando... As estrelas sorriem de escutar As baladas atrozes Dos sapos. E o luar úmido... fino... Amávico... tutelar... Anima e transfigura a solidão cheia de vozes... Teresópolis, 1912
Manuel Bandeira
Francisca, Francisca, Ai Rosa Francisca, Me dá tua boca Dentuça e pequena, Pequena e sabida! Francisca, Francisca, Me dá teus dois pés! Teus pés tão felizes De te pertencerem, De neles pesares, De andarem contigo. Francisca, Francisca, Me dá teus joelhos Pontudos e finos, Teus joelhos magros! Francisca, Francisca, Francisca, me dá Tuas pestaninhas Tão louras, tão brancas, Tão... tão humorísticas! Francisca, Francisca, Ai Rosa Francisca!
Manuel Bandeira
Sou bem-nascido. Menino, Fui, como os demais, feliz. Depois, veio o mau destino E fez de mim o que quis. Veio o mau gênio da vida, Rompeu em meu coração, Levou tudo de vencida, Rugiu como um furacão, Turbou, partiu, abateu, Queimou sem razão nem dó — Ah, que dor! Magoado e só, — Só! — meu coração ardeu: Ardeu em gritos dementes Na sua paixão sombria... E dessas horas ardentes Ficou esta cinza fria. — Esta pouca cinza fria... 1917
Manuel Bandeira
Francisca, Francisca, Ai Rosa Francisca, Francisca Adelaide! Não queres ser Rosa, Pois então, Francisca, Me dá essa rosa: À rosa mais limpa, Mais escondidinha — Rosa bonitinha —, A única rosa Em que para sempre, À todo o momento, De dia ou de noite, Feliz, infeliz, Ai Rosa Francisca, Tenho o pensamento. Ai Rosa Francisca! Ai Rosa Francisca Adelaide!
Manuel Bandeira
A mata agita-se, revoluteia, contorce-se toda e sacode-se! A mata hoje tem alguma coisa para dizer. E ulula, e contorce-se toda, como a atriz de uma pantomima trágica. Cada galho rebelado Inculca a mesma perdida ânsia. Todos eles sabem o mesmo segredo pânico. Ou então — é que pedem desesperadamente a mesma instante coisa. Que saberá a mata? Que pedirá a mata? Pedirá água? Mas a água despenhou-se há pouco, fustigando-a, escorraçando-a, saciando-a como aos alarves. Pedirá o fogo para a purificação das necroses milenárias? Ou não pede nada, e quer falar e não pode? Terá surpreendido o segredo da terra pelos ouvidos finíssimos das suas raízes? A mata agita-se, revoluteia, contorce-se toda e sacode-se! A mata está hoje como uma multidão em delírio coletivo. Só uma touça de bambus, à parte, Balouça... levemente... levemente... levemente... E parece sorrir do delírio geral. Petrópolis, 1921
Manuel Bandeira
Santa Clara, clareai Estes ares. Dai-nos ventos regulares, De feição. Estes mares, estes ares Clareai. Santa Clara, dai-nos sol. Se baixar a cerração, Alumiai Meus olhos na cerração. Estes montes e horizontes Clareai. Santa Clara, no mau tempo Sustentai Nossas asas. A salvo de árvores, casas E penedos, nossas asas Governai. Santa Clara, clareai. Afastai Todo risco. Por amor de S. Francisco, Vosso mestre, nosso pai, Santa Clara, todo risco Dissipai. Santa Clara, clareai.