Álvaro de Campos
Foi criado em 1915. Diferente de Alberto Caeiro, que considera a sensação de forma saudável e tranquila, mas rejeita o pensamento, ou de Ricardo Reis, que advoga a indiferença olímpica, Campos procura a totalização das sensações, conforme as sente ou pensa, o que lhe causa tensões profundas.
Álvaro de Campos
Entremos na morte com alegria! Caramba O ter que vestir fato, o ter que lavar o corpo, O ter que ter razão, semelhanças, maneiras e modos; O ter rins, fígado, pulmões, brônquios, dentes. Coisas onde há dor de [...] e moléstias (Merda para isso tudo!) Estou morto, de tédio também Eu bato, a rir, com a cabeça nos astros Como se desse com ela num arco de brincadeira Estendido, no carnaval, de um lado ao outro do corredor, Irei vestido de astros; com o sol por chapéu de coco No grande Carnaval do espaço entre Deus e a vida. Meu corpo é a minha roupa de baixo; que me importa Que o seu carácter de lixo seja terra no jazigo Que aqui ou ali a coma a traça orgânica toda? Eu sou Eu . Viva eu porque estou morto! Viva! Eu sou eu . Que tenho eu com a roupa-cadáver que deixo? Que tem o cu com as calças? Então não teremos nós cuecas por esse infinito fora? O quê, o para além dos astros nem me dará outra camisa? Bolas, deve haver lojas nas grandes ruas de Deus. Eu, assombroso e desumano, Indistinto a esfinges claras, Vou embrulhar-me em estrelas E vou usar o Sol como chapéu de coco Neste grande carnaval do depois de morrer. Vou trepar, como uma mosca ou um macaco pelo sólido Do vasto céu arqueado do mundo, Animando a monotonia dos espaços abstractos Com a minha presença subtilíssima.
Álvaro de Campos
SAUDAÇÂO A W. WHITMAN Para cantar-te, Para cantar-te como tu quererias que te cantassem, Melhor é cantar a terra, o mar, as cidades e os campos — Os homens, as mulheres, as crianças, As profissões, [...], as (...) Todas as coisas que, juntas, formam a síntese-universo, Todas as coisas que, separadas, valem a síntese-Universo, Todas as coisas que universais formam a síntese Deus. Ah, o poema que te cantasse bem, Seria o poema que todo cantasse tudo, O poema em que estivessem todas as vestes e todas as sedas — Todos os perfumes e todos os sabores E o contacto em todos os sentidos do tacto de todas as coisas tangíveis. Poema que dispensasse a música, música com vida, Poema que transcendesse a pintura, pintura com alma
Álvaro de Campos
CARRY NATION Não uma santa estética, como Santa Teresa, Não uma santa dos dogmas, Não uma santa. Mas uma santa humana, maluca e divina, Materna, agressivamente materna, Odiosa, como todas as santas, Persistente, com a loucura da santidade. Odeio-a e estou de cabeça descoberta E dou-lhe vivas sem saber porquê! Estupor americano aureolado de estrelas! Bruxa de boa intenção... Não lhe desfolhem rosas na campa, Mas louros, os louros da glória Façamos-lhe a glória e o insulto! Bebamos à saúde da sua imortalidade Esse vinho forte de bêbados. Eu, que nunca fiz nada no mundo, Eu, que nunca soube querer nem saber, Eu, que fui sempre a ausência da minha vontade, Eu te saúdo, mãezinha maluca, sistema sentimental! Exemplar da aspiração humana! Maravilha do bom gesto, duma grande vontade! Minha Joana de Arc sem pátria! Minha Santa Teresa humana! Estúpida como todas as santas E militante como a alma que quer vencer o mundo! É no vinho que odiaste que deves ser saudada! É com brindes gritados chorando que te canonizaremos! Saudação de inimigo a inimigo! Eu, tantas vezes caindo de bêbado só por não querer sentir, Eu, embriagado tantas vezes, por não ter alma bastante, Eu, o teu contrário, Arranco a espada aos anjos, aos anjos que guardam o Éden, E ergo-a em êxtase, e grito ao teu nome.
Álvaro de Campos
Não! Só quero a liberdade! Amor, glória, dinheiro são prisões. Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles? Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo. Quero respirar o ar sozinho, Não tenho pulsações em conjunto, Não sinto em sociedade por quotas, Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim. Onde quero dormir? No quintal... Nada de paredes — ser o grande entendimento — Eu e o universo, E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fatos Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos, O grande abismo infinito para cima A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara, Onde só os olhos — outro céu — revelam o grande ser subjectivo. Não quero! Dêem-me a liberdade! Quero ser igual a mim mesmo. Não me capem com ideais! Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras! Não me façam elogiável ou inteligível! Não me matem em vida! Quero saber atirar com essa bola alta à lua E ouvi-la cair no quintal do lado! Quero ir deitar-me na relva, pensando "Amanhã vou buscá-la"... Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado... Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado... " Amanhã vou buscá-la ao quintal" Buscá-la ao quintal Ao quintal ao lado...
Álvaro de Campos
A liberdade, sim, a liberdade! A verdadeira liberdade! Pensar sem desejos nem convicções. Ser dono de si mesmo sem influência de romances! Existir sem Freud nem aeroplanos, Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço! A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida! Como o luar quando as nuvens abrem A grande liberdade cristã da minha infância que rezava Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim... A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente, A noção jurídica da alma dos outros como humana, A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo! Passos todos passinhos de criança... Sorriso da velha bondosa... Apertar da mão do amigo [sério?]... Que vida que tem sido a minha! Quanto tempo de espera no apeadeiro! Quanto viver pintado em impresso da vida! Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade, Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote Da casa do campo da minha velha infância... Eu bebia e ele chiava, Eu era fresco e ele era fresco, E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre. Que é do púcaro e da inocência? Que é de quem eu deveria ter sido? E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?
Álvaro de Campos
PARAGEM. ZONA Tragam-me esquecimento em travessas! Quero comer o abandono da vida! Quero perder o hábito de gritar para dentro. Arre, já basta! Não sei o quê. mas já basta... Então viver amanhã, hein?... E o que se faz de hoje? Viver amanhã por ter adiado hoje? Comprei por acaso um bilhete para esse espectáculo? Que gargalhadas daria quem pudesse rir! E agora aparece o eléctrico — o de que eu estou à espera — Antes fosse outro... Ter de subir já! Ninguém me obriga, mas deixai-o passar, porquê? Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida... Que náusea no estômago real que é a alma consciente! Que sono bom o ser outra pessoa qualquer... Já compreendo porque é que as crianças querem ser guarda-freios... Não, não compreendo nada... Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida...
Álvaro de Campos
E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo... — O dilúvio de Deus e o bebé loirinho boiando morto à tona de água, Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva, E a vasta humilhação de existir um amor taciturno — Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte, Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria — Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque a alma — A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim. Meus versos são a minha impotência. O que não consigo, escrevo-o; E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia. A costureira estúpida violada por sedução, O marçano rato preso sempre pelo rabo, O comerciante próspero escravo da sua prosperidade — Não distingo, não louvo, não (...) — São todos bichos humanos, estupidamente sofrentes. Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo, Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho, E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim. Meu coração esquife, meu coração (...), meu coração cadafalso — Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim. Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos, Bebedeira da servilidade altruísta, Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar esquerdo...
Álvaro de Campos
Quando for a Grande Partida, Quando embarcarmos de vez para fora dos seres e dos sentimentos E no paquete A Morte (que rótulo levarão as nossas malas... Que nome comprazentemente estrangeiro, de lugar, é o do porto de destino?) Quando, emigrantes para sempre, fizermos a viagem irreparável, E abandonarmos este oco e pavoroso mundo tão (...) para os nervos, Estas sensações das coisas tão ligadas e misteriosas, Estes sentimentos humanos tão naturais e inexplicáveis Estas torturas, estes desejos para fora daqui (e de agora), estas saudades súbitas e sem objecto, Este subir do nosso feminino ao olhar que se vela e é materno para as coisas pequeninas, Para os soldados de chumbo, e os comboios de corda e as fivelas dos sapatos da nossa infância, Quando, de vez, para sempre, irremediavelmente, (...)
Álvaro de Campos
DILUENTE A vizinha do número quatorze ria hoje da porta De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno. Ria naturalmente com a alma na cara. Está certo: é a vida. A dor não dura porque a dor não dura. Está certo. Repito: está certo. Mas o meu coração não está certo. O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo da vida. Cá está a lição, ó alma da gente! Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu, Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim? Estou só no mundo, como um peão de cair. Posso morrer como o orvalho seca. Por uma arte natural de natureza solar, Posso morrer à vontade da deslembrança, Posso morrer como ninguém... Mas isto dói, Isto é indecente para quem tem coração... Isto... Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche com lágrimas... Gloria? Amor? O anseio de uma alma humana? Apoteose ás avessas... Dêem-me Agua de Vidago, que eu quero esquecer a Vida!
Álvaro de Campos
Estou cansado da inteligência. Pensar faz mal às emoções. Uma grande reacção aparece. Chora-se de repente, e todas as tias mortas fazem chá de novo Na casa antiga da quinta velha. Pára. meu coração! Sossega, minha esperança factícia! Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui... Meu sono bom porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer! Meu horizonte de quintal e praia! Meu fim antes do princípio! Estou cansado da inteligência. Se ao menos com ela se percebesse qualquer coisa! Mas só percebo um cansaço no fundo, como baixam internas Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho.
Álvaro de Campos
Bem sei que tudo é natural Mas ainda tenho coração... Boa noite e merda!... (Estala, meu coração!) (Merda para a humanidade inteira!) Na casa da mãe do filho que foi atropelado, Tudo ri, tudo brinca. E há um grande ruído de buzinas sem conta a lembrar Receberam a compensação: Bebé igual a X, Gozam o X neste momento, Comem e bebem o bebé morto, Bravo! São gente! Bravo! São a humanidade! Bravo: são todos os pais e todas as mães Que têm filhos atropeláveis! Como tudo esquece quando há dinheiro. Bebé igual a X. Com isso se forrou a papel uma casa. Com isso se pagou a última prestação da mobília. Coitadito do Bebé. Mas, se não tivesse sido morto por atropelamento, que seria das contas? Sim, era amado. Sim, era querido Mas morreu. Paciência, morreu! Que pena, morreu! Mas deixou o com que pagar contas E isso é qualquer coisa. (É claro que foi uma desgraça) Mas agora pagam-se as contas. (É claro que aquele pobre corpinho Ficou triturado) Mas agora, ao menos, não se deve na mercearia. (É pena sim, mas há sempre um alívio.) O bebé morreu, mas o que existe são dez contos. Isso, dez contos. Pode fazer-se muito (pobre bebé) com dez contos. Pagar muitas dívidas (bebezinho querido) Com dez contos. Pôr muita coisa em ordem (Lindo bebé que morreste) com dez contos. Bem se sabe é triste (Dez contos) Uma criancinha nossa atropelada (Dez contos) Mas a visão da casa remodelada (Dez contos) De um lar reconstituído (Dez contos) Faz esquecer muitas coisas (como o choramos!) Dez contos! Parece que foi por Deus que os recebeu (Esses dez contos). Pobre bebé trucidado! Dez contos.
Álvaro de Campos
Da casa do monte, símbolo eterno e perfeito, Vejo os campos, os campos todos, E eu os saúdo por fim com a voz verdadeira, Eu lhes dou vivas, chorando, com as lágrimas certas e os vivas exactos — Eu os aperto a meu peito, como filho que encontrasse o pai perdido. Vivam, vivam, vivam Os montes, e a planície, e as ervas! Vivam os rios, vivam as fontes! Vivam as flores, e as árvores, e as pedras! Vivam os entes vivos e os bichos pequenos, Os bichos que correm, insectos e aves, Os animais todos, tão reais sem mim, Os homens, as mulheres, as crianças, As famílias, e as não-famílias, igualmente! Tudo quanto sente sem saber porquê! Tudo quanto vive sem pensar que vive! Tudo que acaba e nunca se aumenta com nada, Sabendo, melhor que eu, que nada há que temer, Que nada é fim, que nada é abismo, que nada é mistério, E que tudo é Deus, e que tudo é Ser, e que tudo é Vida. Ah, estou liberto! Ah, quebrei todas As algemas do pensamento. Eu, o claustro e a cave voluntários de mim mesmo, Eu o próprio abismo que sonhei, Eu, que vi em tudo caminhos e atalhos de sombra E a sombra e os caminhos e os atalhos eram eu! Ah, estou liberto... Mestre Caeiro, voltei à tua casa do monte E vi o mesmo que vias, mas com meus olhos, Verdadeiramente com meus olhos, Verdadeiramente verdadeiros... Ah vi que não há muitos abismos! Vi que (...)
Álvaro de Campos
Hoje, que sinto nada a vontade, e não sei que dizer, Hoje, que tenho a inteligência sem saber o que querer, Quero escrever o meu epitáfio: Álvaro de Campos jaz Aqui, o resto a Antologia grega traz... E a que propósito vem este bocado de rimas? Nada... Um amigo meu, chamado (suponho) Simas, Perguntou-me na rua o que é que estava a fazer, E escrevo estes versos assim em vez de lho não saber dizer. É raro eu rimar, e é raro alguém rimar com juízo. Mas às vezes rimar é preciso. Meu coração faz pá como um saco de papel socado Com força, cheio de sopro, contra a parede do lado. E o transeunte, num sobressalto, volta-se de repente E eu acabo este poema indeterminadamente.
Álvaro de Campos
Aquela falsa e triste semelhança Entre quem julgo ser e quem eu sou. Sou a máscara que volve a ser criança, Mas reconheço, adulto, aonde estou, Isto não é o Carnaval, nem eu. Tenho vontade de dormir, e ando. O que passa, ondeando, em torno meu, Passa (...) Dormir, despir-me deste mundo ultraje, Como quem despe um dominó roubado. Despir a alma postiça como a um traje. Tenho náusea carnal do meu destino. Quase me cansa me cansar. E vou, Anónimo, (...) menino, Por meu ser fora à busca de quem sou.
Álvaro de Campos
Há tanto tempo que não sou capaz De escrever um poema extenso! Há anos... Perdi a virtude do desenvolvimento rítmico Em que a ideia e a forma, Numa unidade de corpo com alma, Unanimemente se moviam... Perdi tudo que me fazia consciente De uma certeza qualquer no meu ser... Hoje o que me resta? O sol que está sem que eu o chamasse... O dia que me não custou esforço... Uma brisa, com a festa de uma brisa Que me dão uma consciência do ar... E o egoísmo doméstico de não querer mais nada Mas, ah!, minha <i>Ode Triunfal</i> , O teu movimento rectilíneo! Ah, minha <i>Ode Marítima</i> A tua estrutura geral em estrofe antiestrofe e epodo! E os meus planos, então, os meus planos — Esses é que eram as grandes odes. E aquela a <i> </i> última a suprema a impossível!
Álvaro de Campos
NOTAS SOBRE TAVIRA Cheguei finalmente à vila da minha infância. Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei. (Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado). Tudo é velho onde fui novo. Desde já — outras lojas, e outras frontarias de pinturas nos mesmos prédios — Um automóvel que nunca vi (não os havia antes) Estagna amarelo escuro ante uma porta entreaberta. Tudo é velho onde fui novo. Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto. A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo. Paro diante da paisagem, e o que vejo sou eu. Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos — Senhor do mundo — É aos 41 que desembarco do comboio [indolentão?]. O que conquistei? Nada. Nada, aliás, tenho a valer conquistado. Trago o meu tédio e a minha falência fisicamente no pesar-me mais a mala... De repente avanço seguro, resolutamente. Passou roda a minha hesitação Esta vila da minha infância é afinal uma cidade estrangeira. (Estou à vontade, como sempre, perante o estranho, o que me não é nada) Sou forasteiro tourist, transeunte. E claro: é isso que sou. Até em mim, meu Deus, até em mim.
Álvaro de Campos
Todas as cartas de amor são Ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor, Como as outras, Ridículas. As cartas de amor, se há amor, Têm de ser Ridículas. Mas, afinal, Só as criaturas que nunca escreveram Cartas de amor É que são Ridículas. Quem me dera no tempo em que escrevia Sem dar por isso Cartas de amor Ridículas. A verdade é que hoje As minhas memórias Dessas cartas de amor É que são Ridículas. (Todas as palavras esdrúxulas, Como os sentimentos esdrúxulos, São naturalmente Ridículas).
Álvaro de Campos
A rapariga inglesa, uma loura, tão jovem, tão boa Que queria casar comigo... Que pena eu não ter casado com ela... Teria sido feliz Mas como é que eu sei se teria sido feliz? Como é que eu sei qualquer coisa a respeito do que teria sido Do que teria sido, que é o que nunca foi? Hoje arrependo-me de não ter casado com ela, Mas antes que até a hipótese de me poder arrepender de ter casado com ela. E assim é tudo arrependimento, E o arrependimento é pura abstracção. Dá um certo desconforto Mas também dá um certo sonho... Sim, aquela rapariga foi uma oportunidade da minha alma. Hoje o arrependimento é que é afastado da minha alma. Santo Deus! que complicação por não ter casado com uma inglesa que já me deve ter esquecido!... Mas se não me esqueceu? Se (porque há disso) me lembra ainda e é constante (Escuso de me achar feio, porque os feios também são amados E às vezes por mulheres!) Se não me esqueceu, ainda me lembra. Isto, realmente, é já outra espécie de arrependimento. E fazer sofrer alguém não tem esquecimento. Mas, afinal, isto são conjecturas da vaidade. Bem se há-de ela lembrar de mim, com o quarto filho nos braços, Debruçada sobre o Daily Mirror a ver a Pussy Maria. Pelo menos é melhor pensar que é assim. É um quadro de casa suburbana inglesa, É uma boa paisagem íntima de cabelos louros, E os remorsos são sombras... Em todo o caso, se assim é, fica um bocado de ciúme. O quarto filho do outro, o Daily Mirror na outra casa. O que podia ter sido... Sim, sempre o abstracto, o impossível, o irreal mas perverso — O que podia ter sido. Comem marmelade ao pequeno almoço em Inglaterra... Vingo-me em toda a linguagem inglesa de ser um parvo português. Ah, mas ainda vejo O teu olhar realmente tão sincero como azul A olhar como uma outra criança para mim... E não é com piadas de sal do verso que te apago da imagem Que tens no meu coração; Não te disfarço, meu único amor, e não quero nada da vida.
Álvaro de Campos
Acordo de noite subitamente. E o meu relógio ocupa a noite toda. Não sinto a Natureza lá fora, O meu quarto é uma coisa escura com paredes vagamente brancas. Lá fora há um sossego como se nada existisse. Só o relógio prossegue o seu ruído. E esta pequena coisa de engrenagens que está em cima da minha mesa Abafa toda a existência da terra e do céu... Quase que me perco a pensar o que isto significa, Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca, Porque a única coisa que o meu relógio simboliza ou significa É a curiosa sensação de encher a noite enorme Com a sua pequenez...
Álvaro de Campos
Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.